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Efeito de solo 2.0 ou o Brabham BT46B – o carro ventoinha

Finalmente está a chegar a temporada de Fórmula 1 de 2022. Só mais uma temporada de F1, certo? Errado, estamos todos à espera do que aí vem há muito. E o que aí vem é uma nova fórmula aerodinâmica que reintroduz um novo conceito há muito abandonado pela Fórmula 1: o efeito de solo. Este artigo não é especificamente sobre isso, se quiserem saber mais sobre o tema temos este artigo que aborda mais em detalhe os novos regulamentos e os princípios técnicos. Na verdade, o carro que aqui trazemos hoje é um exemplo glorioso da utilização de efeito de solo… mas de uma forma uma bocadinho diferente.

Falamos, como já devem ter percebido se leram o título, do Brabham BT-46B. Nos seus 70 anos a Fórmula 1 viu surgirem soluções geniais que normalmente são imediatamente contestadas pelas equipas que não se lembraram disso. Algumas dessas ideias que tocam os limites do regulamento conseguem ainda passar, como foi o caso do célebre difusor duplo do Brawn BGP01, outras morrem à nascença como foi o caso do chassis duplo do infame Lotus 88 (talvez a primeira grande vítima do “espírito do regulamento”?) e outras vivem no limbo até alguém fechar o buraco do regulamento por onde entraram como foi o caso do DAS da Mercedes em 2020 e outras ainda acabam em acordos secretos.

O BT46B é um dos nossos F1 favoritos, já abordamos por diversas vezes quer no podcast, quer noutros artigos, mas sempre de forma superficial. Desta vez vamos então abordar mais em detalhe o genial e controverso Brabham BT46B de Gordon Murray.

“Brabham, you have the best fans!”

O ano do efeito de solo

Estávamos em 1978 e à frente da Brabham estava Bernie Ecclestone. Brabham que tentava voltar ao topo da Fórmula 1 depois de ter sido apenas quinta classificada no Mundial de Construtores em 1977 e de os seus pilotos, Hans-Joachim Stuck e John Watson apenas terem sido, respectivamente, décimo primeiro e décimo terceiro no Mundial de Pilotos. A Ferrari e Niki Lauda eram os campeões em título e a Lotus aparecia em força com o Lotus 79, uma versão refinada do Lotus 78 que estreara o uso do efeito de solo em larga escala na F1 na época anterior. Era a época em que o motor Ford V8 DFV dominava as grelhas, foi o ano em que a Renault estreou o motor Turbo e Bernie Ecclestone era dono da Brabham.

A Brabham era justamente uma das poucas equipas que não utilizava o Ford DFV. As outras eram obviamente a Ferrari e a Renault que faziam os seus próprios motores e a Ligier que recorria ao V12 da Matra. A equipa do Tio Bernie era servida pelo 12 cilindros boxer (flat-12) de fábrica da Alfa-Romeo. Para tentar recuperar o título, a Brabham tinha contratado justamente o campeão em título, Niki Lauda, que deixara a Ferrari no final do ano anterior. À frente do departamento técnico da Brabham estava Gordan Murray, que tinha a missão de desenvolver um carro capaz de bater não só a campeã em título Ferrari mas sobretudo a Lotus que ameaçava dominar a Fórmula 1 com os seus carros-asa.

O Lotus 79 dominava a Fórmula 1… até à chegada do BT46B

O Lotus 78 tinha mostrado na época anterior qual o caminho a seguir. O desenvolvimento do BT46 não foi fácil, contudo. O flat-12 Alfa Romeo tinha um atravancamento superior ao do V8 Ford-Cosworth DFV. O motor Alfa-Romeo estima-se que seria cerca de 50cv mais potente que o Ford DFV mas às custas de um peso e consumo de combustível muito superiores. Isto tornava o carro pesado e pouco ágil quando comparado com rivais como a Lotus ou a McLaren. Isso tornava impossível colocar túneis de Venturi debaixo do carro capazes de ser utilizados para criar efeito de solo de forma efectiva. Por exemplo, no lugar onde deveria passar um dos túneis de Venturi estava justamente a cabeça do motor.

Sem possibilidade de criar um “carro-asa”, Murray e a sua equipa de engenheiros, tiveram que ser criativos e produzir uma solução alternativa. Pelo meio, pediram à Alfa Romeo que desenvolvesse um novo motor V12, mais compacto, mas isso levou tempo e só ficou pronto para a temporada seguinte.

A inspiração para a solução encontrada pela Brabham veio, tal como o carro-asa de Colin Chapman, do outro lado do “charco” e uma vez mais do Chaparral 2J de Jim Hall que competia na Can-Am. O carro-aspirador, como ficou conhecido, tinha não uma mas duas ventoinhas na traseira que aspiravam o ar debaixo do carro, gerando assim quantidades imensas de carga aerodinâmica. O problema do 2J estava justamente nas ventoinhas que eram accionadas por um pequeno motor a dois tempos mas era extremamente pouco fiável, nunca tendo tido grande sucesso até ser banido.

Embora a ideia estivesse lá, o Chaparral 2J não era, digamos, tão refinado como o Brabham BT46B.

A ideia de uma ventoinha aspiradora era interessante mas seria legal? Gordon Murray explica no seu livro “One Formula, 50 years of car design” como é que encontraram o buraco no regulamento que permitiu ao BT46B ser legal:

“Voltei a ler os regulamentos novamente e o Artigo 3.7 sobre dispositivos aerodinâmicos dizia ‘Qualquer dispositivo cuja função primária seja ter influência aerodinâmica no carro deve permanecer sempre estacionário e ser fixo relativamente à massa suspensa do carro’. Falei com um amigo advogado, e perguntei, ‘o que é significa função primária?’ e ele respondeu ‘Bem, quantas funções existem aí?’, eu respondi ‘Duas’. Então ele disse, ‘A função primária é aquela que tem mais de metade da influência’.

“Então se nós conseguíssemos ter saias laterais para fechar a lateral como a Lotus e ter uma ventoinha de refrigeração que use mais de 50% do seu fluxo para arrefecer o carro e o resto para o sugar contra o chão…”

E se bem o pensou, melhor o fez. Nascia assim o BrabhamBT46B. O conceito era simples: a ventoinha “de refrigeração” sugava o ar debaixo do carro criando assim uma zona de baixa pressão e, como consequência, gerava tremendas quantidades de carga aerodinâmica, à semelhança do que a Lotus conseguia com os túneis de Venturi.

Ao contrário do que acontecia com o Chaparral 2J, a ventoinha não era activada por um motor auxiliar. A ventoinha era activada via caixa de velocidades, ao qual estava acoplada por um eixo e um sistema de embraiagens para evitar que a rotação da ventoinha pudesse causar problemas durante as passagens de caixa. Como a velocidade da ventoinha dependia da velocidade do motor, quanto mais depressa os pilotos acelerassem em curva, mais depressa a ventoinha girava, mais ar aspirava e mais depressa eles conseguiam ir! Lauda dizia que o carro parecia curvar sobre carris.

Um especialista em termodinâmica, David Cox, ficou encarregue de desenvolver a ventoinha, desde definir o número de lâminas da mesma, ângulo de ataque das lâminas até definir a velocidade ideal de rotação.

Conceito simples: ventoinha suga ar para o motor e “por acaso” suga também o ar debaixo do carro, gerando uma zona de baixa pressão e grandes quantidades de carga aerodinâmica.
Embora simples, o conceito trazia diversos desafios: o material das lâminas, por exemplo. As primeiras lâminas em plástico desintegravam-se. Com fibra de vidro os resultados não foram muito melhores e por fim acabaram por solucionar o problema com lâminas em magnésio. Outro problema grave e que poderia pôr em causa a segurança dos pilotos estava relacionado com as saias laterais. As saias fechavam a lateral dos carros junto ao chão mantendo “selada” a zona inferior do carro, a qual se encontrava a baixa pressão devido à remoção do ar pela ventoinha. Caso as saias se danificassem, a zona inferior deixaria de estar selada e ficaria à pressão atmosférica, o que resultaria numa perda de carga aerodinâmica repentina. Era então necessário prevenir os pilotos caso ocorresse algum dano nas saias de que era necessário levantar o pé. Mas como avisar os pilotos numa época onde a electrónica era ainda muito rudimentar? Deixemos que o próprio Gordon Murray nos explique:
“O David [Cox] foi a um ferro-velho e arranjou um altímetro de avião antigo. Tínhamos um tubo de pitot na frente, o qual media a pressão estática. Tudo o que um altímetro faz para ler a altitude é medir a pressão estática e a pressão local e usa o diferencial de pressão para calcular a altura. Então foi o que nós fizemos. Tínhamos este altímetro pendurado no cockpit, mesmo em frente ao piloto, com uma zona verde e uma zona vermelha. Dissemos-lhes, “Esquece os números; não têm nada a ver com isto. Se te estiveres a aproximar de uma curva, o ponteiro tem de estar na zona verde. Se estiver na zona vermelha, perdeste sucção. Abranda.”

 

Anderstorp, 17 de Junho de 1978

O Grande Prémio da Suécia não é nem nunca foi uma prova com grande tradição no Mundial de Fórmula 1. Fez parte do Campeonato do Mundo apenas por 6 vezes, todas corridas na então SandinavianRaceway, em Anderstorp, mas a última dessas 6 edições ficaria na história da modalidade como a única corrida ganha por um “carro-ventoinha”. Foi também a primeira e última prova do BT46B e provavelmente por isso é que esse registo de vitórias não é superior mas regressemos um pouco atrás, aos treinos para o último Grande Prémio da Suécia até à data.

O BT46B deu logo nas vistas por causa de enorme ventoinha que tinha na traseira. O carro foi imediatamente protestado por outras equipas, alegando que se tratava de um dispositivo aerodinâmico móvel, mas a Brabham contra-argumentou que se tratava de um dispositivo de refrigeração e foi por isso admitido à partida do Grande Prémio.

A Brabham tentou esconder a ventoinha de olhares indiscretos. Para isso, usou uma tampa de um caixote do lixo que arranjaram no circuito e por acaso encaixava na perfeição na ventoinha.

A Brabham rapidamente se apercebeu da tremenda vantagem que tinha sobre as outras equipas e, por isso, Bernie Ecclestone ordenou que os seus dois carros disputassem a qualificação… com o tanque cheio! Apesar do enorme lastro de combustível que os carros levavam, John Watson e Niki Lauda qualificaram-se, respectivamente, em segundo e terceiro lugar, entre os dois Lotus 79 de MarioAndretti e RonniePeterson, o homem da casa.

Partida para o GP da Suécia de 78 com Andretti a liderar na frente de Lauda e Watson.

Na corrida não houve grande história. Watson cometeu um erro à volta 19 e desistiu mas Lauda seguiu tranquilamente para uma vitória confortável com mais de meio minuto de avanço para Ricardo Patrese (Arrows) e Ronnie Peterson (Lotus). Claro que no meio disto tudo o que se passou em pista foi talvez uma cena secundária no meio da história.

No no Walter, that was so not right!

 

Bernie Ecclestone espreita o futuro

Aqui no Bandeira Amarela somos conhecidos por não sermos capazes de acertar uma previsão mas claramente o Tio Bernie tem uma capacidade de ler o futuro muito melhor do que a nossa. No final da corrida, Colin Chapman terá instigado Andretti a espalhar pelo pelotão o rumor de que o Brabham atirava óleo e pedras para os carros perseguidores por causa da ventoinha. Gordan Murray contudo alega que tal seria impossível quer pela velocidade de saída do ar (cerca de 90km/h), quer pelo efeito radial da ventoinha que atiraria quaisquer resíduos para o lado e não directamente para quem viesse atrás.

Niki Lauda a passear no GP da Suécia de 1978.

À época a entidade responsável pela organização da Fórmula e também por garantir a legalidade dos carros de Fórmula 1 era a Commission Sportive Internationale (CSI) – que mais tarde daria origem à célebre FISA de Jean Marie Balestre. A CSI enviou uma equipa à Brabham para verificar a legalidade do carro. Munidos de um anemómetro, mediram o fluxo de ar que passava através da ventoinha e através dos radiadores e concluíram que, de facto, mais de 55% do fluxo de ar passava através dos radiadores. Deste modo, comprovava-se que a função primária da ventoinha era a de refrigerar o motor, tornando o BT46B. Informaram também que, embora o carro estivesse legal, o loophole nos regulamentos que o tornava legal seria fechado e nos regulamentos do ano seguinte já não poderiam utilizar este sistema.

O jovem Bernie Ecclestone decidiu voluntariamente retirar o BT46B para não chatear ninguém.

 

Ao contrário da crença generalizada, o Brabham BT46B “fan-car” nunca foi portanto considerado ilegal à época. No entanto, não voltaria a correr o que certamente ajudou a enraizar esta crença. Falávamos há pouco de Bernie Ecclestone e da sua capacidade para ver mais além. Pois bem, Bernie estava a ver o seu próprio futuro. Ecclestone era fundador e secretário da FOCA (Formula One Constructors Association) e tinha ambições de chegar mais longe. Ambições de chegar ao lugar onde permaneceu durante 30 anos, como responsável máximo da Fórmula 1. Para isso, o passo seguinte, que viria a acontecer durante 1978, era chegar a Director Executivo da FOCA. Isso só seria possível com o apoio das outras equipas e foi aqui que os seus objectivos pessoais chocaram de frente com o BT46B. As outras equipas, lideradas por Colin Chapman, exigiram a Ecclestone que retirasse o carro sob pena de abandonarem a FOCA caso isso não acontecesse. Para não iniciar uma guerra civil com as restante equipas do Mundial de Fórmula 1, Bernie Ecclestone ordenou então à sua equipa que revertesse o BT46B para a sua configuração original e assim correu durante o resto da temporada.

Com o BT46 de volta à sua configuração original, a Lotus e Mario Andretti venceram facilmente o Campeonato do Mundo de Fórmula 1 de 1978. A Brabham ficar-se-ia apenas pelo terceiro lugar entre os construtores, atrás da Lotus e da Ferrari, e Lauda e Watson seriam, respectivamente quarto e sexto classificados. O BT46 de volta à sua configuração original venceria apenas mais um Grande Prémio, em Itália e novamente pelas mãos de Niki Lauda.

Niki Lauda no BT46 em Walkins Glen de volta à configuração mais aborrecida do BT46.

A Brabham não voltaria a vencer um Mundial de Construtores mas voltaria a conseguir ainda mais dois Mundiais de Pilotos, ambos pela mão de Nélson Piquet. O título de pilotos voltaria à equipa britânica em 1981 com o BT49C, também ele um produto do génio de Gordan Murray e resultado de mais uma interpretação muito creativa dos regulamentos e a explorar magistralmente o efeito de solo. Quanto ao BT49C, esse, fica para outro dia.

O carro-ventoinha vive!

Gordan Murray teve ainda uma longa e bem sucedida carreira na Fórmula 1 conseguindo mais três títulos mundiais de pilotos e um de construtores para os seus carros, dois na Brabham com o BT49C e o BT52 e mais tarde na McLaren com o mítico MP4/4 que ganhou 15 das 16 corridas onde participou com Senna e Prost ao volante. Depois disso continuou na McLaren, no departamento de carros de estrada, onde foi responsável por essa obra-prima chamada McLaren F1 e também pelo Mercedes-McLaren SLR. Após isso, fundou a Gordon Murray Design onde tem podido dar largas à imaginação e criar coisas como… o T50!

Com o T50 Gordon Murray promete por “a carne toda no assador”… e uma ventoinha para assar mais depressa!

O T50 é a maneira que Gordon Murray encontrou para colocar na estrada todo o seu conhecimento de engenharia e criar o hipercarro perfeito. O que é que não poderia lá faltar? Uma grande, imponente e espectacular ventoinha no centro da traseira! O T50 foi trabalhado no túnel de vento da Racing Point (agora Aston Martin), em Silverstone e está previsto está na estrada em 2022. Existiram rumores de que poderia ingressar na classe dos hipercarros mas o T50 está completamente fora daquilo que veio a ser o regulamento dos Hypercar. De qualquer forma, parece que vamos mesmo voltar a ter um carro-ventoinha… só que desta vez na estrada.

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